Cais do Valongo
- Frederico Aversa Masson
- 4 de nov. de 2024
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O Cais do Valongo é um sítio arqueológico localizado na Região Portuária do Rio de Janeiro. Redescoberto em 2011, durante a construção do Porto Maravilha (um projeto de revitalização da Região Portuária), ele serviu como ponto de entrada para o Brasil e as Américas de cerca de um milhão de africanos escravizados nos séculos XVIII e XIX. Desde 9 de julho de 2017, é um Patrimônio Mundial da UNESCO, reconhecido como o último remanescente físico de um ponto de chegada de escravizados nas Américas.
Até a década de 1770 — antes do estabelecimento do Cais do Valongo — africanos escravizados chegavam pela Praça do Peixe (atual Praça XV) e a Rua Direita (atual Rua Primeiro de Março), no Centro, servia como local de leilão. O fato de os leilões ocorrerem à vista de todos causava desconforto. Por decreto do vice-rei do Brasil, Dom Luís de Almeida, em 1774, o local de leilão foi transferido para a então isolada área do Valongo, na Região Portuária. Dom Luís estava particularmente incomodado com a forma como os leilões eram conduzidos na época, descrevendo-os como “o terrível costume de os negros entrarem na cidade, pelas vias públicas, nus e portando doenças”.
O Cais do Valongo foi estabelecido na área do Valongo, às margens do bairro da Saúde, e foi projetado para acomodar os pequenos barcos que traziam os escravizados da alfândega (localizada próxima à Rua Direita). Após meses de travessia do Atlântico em condições degradantes — nas quais muitos adoeciam gravemente ou morriam e tinham seus corpos jogados ao mar — os africanos escravizados chegavam primeiro à alfândega do Rio e depois passavam por um período de quarentena nas ilhas da Enxada e do Bom Jesus, na Baía de Guanabara. Isso ocorreu até 1811; devido ao incessante aumento do tráfico de escravos, os comerciantes argumentaram que colocar os escravizados em quarentena nas ilhas era impraticável e custoso, levando à construção do lazareto da Gamboa, no bairro da Saúde (nas proximidades do Valongo). Assim, a partir de 1811, os escravizados chegavam à alfândega e eram levados diretamente ao Valongo, onde passavam por um período de quarentena antes de serem vendidos no local de leilão.
Com a chegada da Família Real Portuguesa em 1808 e a transferência da capital do Império Português de Lisboa para o Rio de Janeiro, após as Guerras Napoleônicas, a população do Rio de Janeiro aumentou exponencialmente, de 15 mil para 30 mil pessoas — e o tráfico de escravos também. Estima-se que, de 1811 a 1831, um milhão de africanos escravizados passaram pelo Cais do Valongo. O cais não era apenas um ponto de entrada para o Rio de Janeiro, mas para todo o Brasil, pois muitos escravizados comprados ali eram enviados para São Paulo, Minas Gerais e outras regiões do interior. Além disso, servia como escala para muitos navios negreiros que viajavam para outras partes da América do Sul, tornando-se o lugar mais fundamental para o tráfico de escravos nas Américas e assumindo um papel pungente nessa trágica parte da história do continente.
Por trás desses números assustadores, há um aspecto ainda mais chocante sobre o Cais do Valongo: muito mais do que um local de leilão, ele era um vasto e complexo centro de escravidão. Como epicentro do tráfico de escravos nas Américas, a região do Valongo abrigava lojas de escravos (onde os africanos escravizados eram expostos para compradores em potencial), o Cemitério dos Pretos Novos (um cemitério para os escravizados que morreram durante a viagem transatlântica ou logo após a chegada ao Rio), um lazareto (o lazareto da Gamboa) e a Igreja da Saúde (onde os recém-chegados eram convertidos ao catolicismo).
Após a pressão britânica, o tráfico transatlântico de escravos foi proibido em 1831, e o Cais do Valongo foi fechado. No entanto, a proibição não foi efetiva, e centenas de milhares de pessoas ainda foram traficadas ilegalmente para o Brasil — mesmo sem o Valongo, pois entravam por cais ilegais. A proibição só foi efetivamente aplicada em 1850, com a Lei Eusébio de Queirós, levando a uma drástica redução do tráfico internacional de escravos no Brasil — mas não da escravidão como um todo, que só seria definitivamente abolida em 1888, com a Lei Áurea. Doze anos após seu fechamento, em 1843, o Cais do Valongo foi aterrado por ordem do Imperador D. Pedro II, e um novo cais foi construído para receber sua esposa prometida, a Imperatriz Teresa Cristina (que vinha de Nápoles para se casar com ele), chamado Cais da Imperatriz.
Após o fechamento do cais em 1831, muitos escravizados libertos e fugidos (que formaram os quilombos da Pedra do Sal e de Santo Cristo) estabeleceram-se na região do Valongo, que passou a ser conhecida como Pequena África devido à sua forte presença afro-brasileira. Tornou-se um lugar de resistência, onde culturas, religiões e tradições africanas foram preservadas e transmitidas para as gerações mais jovens em meio à opressão enfrentada pela população negra no Brasil durante e após a escravidão. Junto às atividades religiosas e culturais, o comércio e o entretenimento prosperaram na comunidade, que é considerada o berço do culto religioso africano no Rio e do samba.
Durante a Reforma Pereira Passos (um projeto de renovação urbana conduzido pelo prefeito Pereira Passos na década de 1900), o Cais da Imperatriz foi aterrado em 1904 — desaparecendo completamente — e a região do Valongo foi reformada, perdendo sua conexão física com a Baía de Guanabara. Entre as obras de revitalização realizadas pela Prefeitura, destacam-se a Praça do Comércio (nomeada em homenagem ao Jornal do Commercio) e o Jardim Suspenso do Valongo, um jardim de inspiração francesa para passeios de fim de tarde da alta sociedade carioca, projetado pelo paisagista Luís Rey e adornado com estátuas dos deuses gregos Minerva, Deméter, Ares e Hermes. Com o projeto de revitalização, a região foi gentrificada, e em 1920 a Pequena África foi desmantelada.
Devido às escavações realizadas durante o projeto Porto Maravilha, o Cais do Valongo foi redescoberto em 2011. Rapidamente, começaram os esforços de preservação, restauração e pesquisas arqueológicas e históricas, pois muitos amuletos e objetos religiosos do Congo, Angola e Moçambique foram encontrados junto aos vestígios do cais. O Cais do Valongo passou a ser protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2012 e se tornou um Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro em 2013, alcançando o status de Patrimônio Mundial da UNESCO em 2017.
Hoje em dia, o Cais do Valongo faz parte do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana do Rio de Janeiro, que se estende pela área da Pequena África. Esse circuito inclui o Jardim Suspenso do Valongo, a Pedra do Sal (antigo quilombo, amplamente conhecida por suas rodas de samba, preservando a memória e a importância cultural da música), o Largo do Depósito (uma praça com armazéns de comerciantes de escravos que funcionavam como lojas de escravos), o Centro Cultural José Bonifácio (uma mansão inaugurada em 1877 pelo Imperador D. Pedro II e nomeada em homenagem ao Patriarca da Independência, José Bonifácio, onde funcionou a primeira escola pública do Brasil até 1966 e, desde 1986, serve como centro cultural para a cultura e memória afro-brasileira, tendo sido reformado e reinaugurado em 2013 pelo prefeito Eduardo Paes), e o Cemitério dos Pretos Novos. Juntos, esses locais comemoram e celebram marcos significativos da resistência, cultura e herança das comunidades afro-brasileiras na Região Portuária do Rio de Janeiro.
Fontes & Referências Bibliográficas
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